4 de out. de 2008

Poetar... por quê?

Um corpo poroso. Um mata-borrão. Um sentimento de urgência atado ao dia-a-dia. Movimento de resistência às forças que estagnam. Mola-mestra para as tentativas de tradução dos enigmas do mundo. Desejo vivo de ir além da morte. Filtro colocado na boca do esgoto. Rosa-dos-ventos. Biruta, indicando os ventos; biruta, amalucando o planeta. Galo cantando manhãs. Cigarra cantando tardes. Coruja piando noites. Panfleto vermelho jogado no chão. Munição, arma, desejo de guerra. Mansidão, flor, desejo de paz. Teia de aranha nas prateleiras. Folha no chão dizendo “É outono!”. Suor no rosto dizendo “É verão!”. Cachecol no pescoço dizendo “É inverno!”. E todas as primaveras no corpo ao mesmo tempo. Ampulheta acionada pela voz da urgência. Onda batendo forte, onda serpenteando mansa. Farol no meio do mar. Oásis no deserto. Pronto Socorro. 0800. Palavras gritando contra o silêncio que aflige. Palavra revestida de outra palavra. Palavra reinventada na boca de espera. Palavra ensimesmada querendo amigo. Palavra em estado de graça plantada na realidade sem graça. Palavra ainda sem nome nascendo dos acontecimentos. Palavra surda e muda com linguagem de sinais própria. Palavra com medo. Palavra sem medo. Palavra sem dinheiro. Palavra que não se cala. Palavra que canta. Eis o poeta.

Por que poetar? Porque, além das livrarias e das bibliotecas, além dos comércios e dos críticos, além muito além do improvável sucesso, há, no poeta, uma angústia incessante de dizer, no sentido transitivo de expor, enunciar, exprimir por palavras; proferir; discursar; recitar, declamar; mandar, ordenar; rezar; mostrar, indicar; referir, narrar; dar a conhecer, apregoar; apontar, censurar; supor, imaginar; afirmar, asseverar; estar inclinado a crer, ter opinião, parecer; chamar, denominar; aconselhar, persuadir; aquilo que lhe vem como verbo intransitivo. Poetar, porque, acima das antologias e das histórias literárias, acima das feiras e das bienais, acima muito acima das listas dos mais lidos, há, no poeta, um livro infinito a ser escrito em forma de livros finitos. Há, no poeta, um menino sempre vivo que fala o que sente porque é menino, e um velho, muito velho e sabido, que converte em símbolos as palavras do menino para que este não apanhe e deixe, por isso, de ser menino.

E porque o poetar não exige tempo nem espaço para existir como pulsão; e porque o tempo e o espaço se inscrevem no poetar como matéria-prima de uma fábrica pré-existente; o poeta (e o contista e o cronista e o romancista e o dramaturgo e todas essas palavras no feminino), escravo do fabricar, vive, ele próprio, além das fronteiras. Ontem, hoje ou amanhã, não importa. A poesia é o mundo sendo. A poesia é o gerúndio. E o poeta, o galo, a cigarra e a coruja sustentando bravamente o gerúndio da poesia.

Christina Ramalho
(para Filipe e seus alunos do PH, no dia 30 de setembro de 2008)