13 de nov. de 2007

Mia

Sempre vi os gatos como "bichos cercados de garras por todos os lados". Apesar de lhes admirar a beleza, fotografá-los em poses diversas, ter um gato ou uma gata, definitivamente, parecia algo incongruente com meu modo de ser e de sentir.
O mistério dos gatos jamais me fascinou a ponto de desejá-los inseridos no meu dia-a-dia. Ao contrário, a transparência dos cães, sim, motivava-me, afinal, é realmente prazeroso contar com a fidelidade de nossos cães quando o mundo tem sido tão "infiel" a nossos sonhos.

Todavia, a vida, com suas surpresas, trouxe-nos Mia. Ela veio após duas experiências com cães. Apesar de não ser muito afeita às rotinas que os animais domésticos nos impõem, acredito que a infância, acompanhada de um animal doméstico, é mais intensa e significativa. Por isso, quando Gabi e Isa começaram a se interessar por animais, não hesitei: "sim".

A primeira cachorrinha que tivemos, Fifi, uma poodle branca e bem magrinha, morreu aos sete anos, deixando um vazio em nossa casa. Ela era delicada como uma "cachorrinha de madame", mas não a tratávamos com "frescuras". Ela era "fresca" por natureza. Após fazer xixi, levantava uma das patinhas e saltitava com a outra para não "tocar" na "sujeira"...

Quando tornava banho, parecia ganhar "ares de superioridade" com seu lacinho e seus pompons. Mas era igualmente inteligente. Sabia, por exemplo, abrir minha bolsa quando percebia haver balas ou chocolates lá dentro. Às vezes, à noite, subia sorrateiramente em nossas camas, enroscava-se no cobertor e por lá ficava até ser descoberta. Seu único defeito: latir insistentemente quando algum barulho do lado de fora surgia. Nada adequado para um cão de apartamento... Um dia, quando estávamos viajando, ela teve uma crise hepática e morreu em poucas horas. Choramos as três, em meio à culpa (afinal não estávamos por perto) e à saudade (talvez ali nós tivéssemos nos dado conta claramente de sua importância em nosso cotidiano). Bem, como a infância já tinha se transformado em "pré-adolescência", sentenciei: "Chega de animais!".

Sentença revogada. A pedido das filhas e, confesso, mortalmente atingida por uma paixão à primeira vista (ou à primeira vitrine), dois meses depois, providenciei outra cadelinha: Nina, uma beagle linda e levadíssima, que quase me levou ao desespero com sua correria, sua fome, seu jeito estabanado. Olhava para ela e me via em sua companhia quando as meninas já estivessem em suas próprias casas. Mas sua determinada teimosia e desobediência às "normas de higiene" da casa me diziam que essa "longa convivência" estava bem longe de ser possível. Fotografei, filmei, comprei acessórios, brinquedos, caminha, etc, e tal. Mas... Não! A imundície invadira meu lindo apartamento. Dei fim àquela tortura e, com o coração partido, entreguei Nina para uma pessoa apaixonada pela raça, que até hoje a trata com delicadeza e ternura admiráveis. Consenso familiar: chega de bichos.

Consenso revogado. A mais nova quer um gato.

Gato? Pensei. Gato é meu signo no horóscopo chinês... E daí? Os gatos são belos e comportados. Gatos não sujam tudo. Não necessitam de "faxina semanal". Por favor, mãe, eu cuido. Eu limpo. Gato? Lembrei-me do Gato de Botas (espertíssimo), da egípcia gata-deusa Sakhmet-Bastet, dos gatos da sorte orientais, do gato preto pronto a cruzar os caminhos dos desavisados, do Gato Félix, do Garfield, dos Aristogatas, do Tom... Mas e as unhas? E as doenças? E a toxoplasmose? Não é esse o nome da doença que podem transmitir? Não. Não. Sim. Não. Sim. Não sei. Talvez. Depende. São necessárias maiores informações. Não entendo de gatos. Gato ou gata? Onde? Comprar, nunca! Já gastei demais com Fifi e Nina. E as unhas? Ai, ai, ai...

Operação adoção. Internet. Gatinha abandonada no Campo de Santana procura lar. E lá fomos nós, eu e a caçula (a mais velha não concordava muito com aquela "novidade") visitar o "orfanato" de gatos mantido por uma veterinária consciente. Lá estava ela. Olhou-nos com seus verdes enigmáticos. Ficamos sabendo: "É exclusivista. Não poderão ter outros, pois ela é ciumenta!" Levamos. Eu sequer sabia como pegar, carregar, alimentar, mexer, etc. Minha filha estava encantada. Sempre ficam. Vamos lá. Veterinário. Compras. Compras. Janelas e portas fechadas. Medo das unhas.

Depois de alguns arranhõezinhos, que pouquíssimo incomodam, a decisão: o nome será "Mia". O miado, de fato, era uma novidade em nossas vidas. Aliás, curiosamente, miado não é um som, são muitos e variados. Quando Mia mia, conversa. Está sempre perto de nós. Não resiste a qualquer tipo de cadarço, corda, barbante. Pega-se neles imediatamente. Limpíssima, usou a caixinha de areia assim que a viu instalada perto da máquina de lavar. Gulosa, devora sua ração, mas não se interessa por nossa comida, com exceção dos iogurtes, uma vez que a mais velha (já interessada...) resolveu lhe permitir uma lambidinha na tampa do "Bliss"... Se Mia nos vê com um iogurte na mão, imediatamente se aproxima, tentando ganhar colo. Aliás, colo é uma exigência. É praticamente impossível sentar no sofá sem ver meu colo invadido por ela, que, sem cerimônia alguma, enrosca-se em nós como um bebê.

Há, entretanto, um algo mais em Mia que me é, particularmente, significativo. Ela não pode ver uma bolsa ou um saco. Imediatamente se enfia nela ou nele e fica por lá, quietinha. Às vezes, ao chegar do supermercado, provoco sua reação. Deixo um saco no chão e espero. Dito e feito. Enfia-se lá, misteriosa em seu gesto. Penso. Será carência ou desejo de partir?

Talvez essa metáfora de Mia seja o que nela mais me comove. Na dúvida entre seu estado de carência e seu espírito de aventura, vejo a mim mesma. Como um espelho. Os verdes olhos de Mia se fizeram espelho. E, em função dela, tenho andado a pensar como andam misteriosos os caminhos de meu próprio amadurecimento.

(Publicado originalmente em Ciranda de Uvas, Editora Opus, 2004. Também disponível em pedagogiaemfoco.pro.br/remia.html)

Absoluta saudade

O mar deste quarto não tem praias,
nem serve de limites. Traz as mágoas,
mas não me leva a ti. Traz os peixes,
mas não fisga a dor, nem cicatriza a fome.

O mar deste quarto é sem graça
e transborda pesadelo para o sonho.
É reflexo da falta que me fazes,
verde corrosivo, azul com teu nome.

O mar deste quarto não tem superfície,
nem me serve pra navegar. Traz teu vulto
como um barco. Traz teus olhos
mas não traz teu olhar.

O mar, neste quarto, solitário,
sem praias, sem barcos, sem mar,
é só a presença da tua ausência,
absoluta saudade de te amar.

(poema publicado no livro Laço e nó (Rio de Janeiro: Elo, 2000)